domingo, 23 de agosto de 2009

Vou estar aqui quando ele passar.

Foi em 1986 que ele voltou a passar pela Terra. Houve grande alvoroço e, como sempre, mensagens apocalípticas sobre o fim dos tempos. Sentado no meio fio em frente a minha casa, ficava por horas olhando fixamente para o Céu escuro. Confesso que sequer vi a cauda do Halley. Eu tinha doze anos.

Contrariando minha mãe, eu e meu primo fomos andar na bicicleta do meu pai logo após o almoço. Enquanto ele pedalava numa banguela – era assim que as pessoas chamavam as ruas “ladeirosas” – para assustarmos um moleque do bairro, resolvi pular da garupa. Nome esquisito e, se não explicado, pode parecer um regionalismo Mineiro. Está lá no dicionário: “garupa é um termo usado para se referir à parte posterior de certos animais que vai desde os rins até a base da cauda”.

As bicicletas e suas versões motorizadas, as motos, herdaram a garupa desses animais – certamente dos cavalos. Fui traquina. Não era briguento. No pulo, quebrei o braço.

Dor insuportável anestesiada pelo sermão de minha mãe – ela e todas as outras são assim.

Na semana retrasada não fui à academia. Ri sozinho do alvoroço – não foi culpa do Halley e sim da Gripe Suína. Rotina alterada.

Na minha memória de infância, o álcool está associado à dor por ser inflamável e causar queimaduras, bem como preparar o bumbum, tão indefeso, para receber uma agulhada do farmacêutico.

Uma vez, para me defender de um “monstro” de jaleco branco e de sua “injeção”, ataquei-o com várias cabeças de cebola que estavam sobre a mesa da cozinha. Para criança, farmacêutico é um mostro de jaleco branco.

Ele fica próximo a minha mesa de trabalho: menos líquido, mais pastoso, em gel. Com perfume que não aciona minha memória de infância. Sempre passo o álcool nas mãos para evitar a Gripe. Entre uma passada e outra me dei conta dos fatos históricos que vivi e tenho vivido. Ri mais ainda.

Sinto, penso, percebo e vivo o que minhas pequenas sobrinhas, de três e dois anos, só irão ler nos livros de história. Certamente serão questões do ENEM – Exame Nacional do Ensino Médio – se resistir até lá.

Vi e ouvi a Fafá de Belém interpretar o Hino Nacional Brasileiro no movimento Diretas Já.
Emocionei-me com a eleição e a morte de Tancredo Neves.

Embraveci com a vitória de Collor e vibrei com o seu “suposto” impeachment.

Senti o terror e a revolução sexual causados pela AIDS.

Tive no bolso o Cruzeiro, Cruzado, Cruzado Novo, Cruzeiro, Cruzeiro Real e Real.

Pela TV eu conheci a ovelha Dolly, acompanhei o funeral de um Papa e a eleição de outro, assustei-me ao ver a calamidade provocada pelas tsunamis e o movimento para frear o Aquecimento Global.

Participei das eleições presidenciais que colocaram Lula no poder por duas vezes consecutivas.

Esperei pelo Bug do Milênio. Passei por ele intacto.

Horrorizado fiquei com a queda das torres gêmeas e ao mesmo tempo tive mais esperança no mundo ao ver um negro ocupando o maior cargo político do planeta.

Estou atônito com os últimos acontecimentos que envolvem as TVs Globo e Record.

São tantas vivências que me perco nelas e, confesso, seria chato para você ler todas elas.

O cometa Halley passa pela órbita terrestre a cada setenta e seis anos. Sua nova visita está prevista para 2061 ou 2062. Fico pensando no que mais viverei até que ele volte. Até lá, não ficarei sentado esperando por ele.

Penso que, por segurança, devemos aprender a pular da garupa – sair das situações que podem quebrar nosso braço, nos ferir de alguma forma. O melhor é não entrar nelas e ter um “passeio de bicicleta menos arriscado”.

Podemos ficar anestesiados com as coisas da vida e com a atitude das pessoas como fiquei pela dor do braço quebrado e pelo sermão da minha mãe. Ainda bem que a anestesia passa. Não fiquemos paralisados.

Alguns vírus podem mesmo nos impedir, por um tempo, de ir aonde temos vontade ou de fazer aquilo que deliciosamente se faz num dia comum - e isso inclui a academia. Que sejam vírus reais e não àqueles que aprisionam e adoecem nossas emoções.

Que tenhamos ao alcance de nossas mãos muitas cabeças de cebola para serem atiradas contra os “monstros de jalecos brancos” – nossos medos. Cada cebola atirada reforçará nossos músculos. Assim, estaremos mais fortalecidos para 2061 ou 2062.

Afinal, quero estar vivo aos oitenta e oito anos para, novamente, sentar no meio fio e olhar fixamente para o Céu para ver o Halley – nem que seja a sua cauda.

3 comentários:

  1. Zezinho, que delícia. Quem sabe a gente vê o Halley tropeçando em nossas bengalinhas... Beijo. Dri

    ResponderExcluir
  2. Nossa, Zé, que viagem!!!! Na cauda do cometa!!!
    Beijo,
    Lu

    ResponderExcluir
  3. Amigo que bonito criar a partir das próprias vivências subsídios poéticos para alimentar a outros. Esta é a diferença entre os poetas e os "mortais", os primeiros criam pontes entre caos e cosmos.
    Parafraseando Niestzche:"É preciso ter um caos dentro de si para dar a luz a uma estrela bailarina".

    ResponderExcluir