domingo, 14 de março de 2010

Panelas de pedra

Quando criança, para tomar leite, preferi um copo de alumínio a mamadeira. Lembro-me que ele era muito amassado. Talvez pelos tombos que eu nele dava ou pelas mãos pesadas de minha mãe no momento de lavá-lo. Era nesse copo que tomava leite frio com farinha de mandioca. Naquela época não tínhamos geladeira. Gosto de leite puro, gelado.

Assim como o copo, as panelas de nossa casa, por um longo tempo, foram amassadas. Algumas vezes era necessário amassar ou desamassar a tampa para ela se encaixar na panela. Outras vezes era necessário amassar ou desamassar a panela para ela se encaixar na tampa. E em tantas outras vezes o amassar e desamassar não possibilitou o encaixe. Pelo contrário, abriram novas frestas por onde saia o calor.

Entre uma mudança e outra, algumas se perdiam de suas tampas. Pensando nisso agora, pode ser que as tampas é que se perdiam das panelas. Ou, quem sabe, as duas resolveram se separar.

Embora juntasse seu dinheirinho para aumentar seu acervo, minha mãe foi uma mulher de poucas panelas. Gostava de cozinhar e fazia isso com maestria. Eu, nem tanto.

Agosto era o mês escolhido para investir parte de suas economias. Depois de subir as ladeiras de Romaria – cidade no interior de Minas Gerais - e enfrentar um mar de pessoas devotas a Nossa Senhora da Abadia, ela se ajoelhava para subir os degraus da igreja. Entre a dificuldade de subir um degrau e outro, ela rezava, fazia suas preces e cumpria suas promessas – ora e outra ela se lembrava de respirar, mesmo ofegante.

Com a fé renovada, a energia nem tanto, ela caminhava até as barracas que vendiam de tudo um pouco e ficavam espalhadas pela cidade. Recolhiam as suas economias as barracas que vendiam à ela as panelas em alumínio batido, com cabo de madeira e tampas que se encaixavam perfeitamente.

Comigo e com ela, as panelas vinham para a nossa cidade num ônibus de banco duro. Não tínhamos carro naquela época e, por isso, íamos para Romaria e voltávamos de lá numa excursão. De nossa cidade o ônibus saia cedo, bem cedo, de madrugada. Pelo longo caminho, as senhoras puxavam as preces e os cantos religiosos com temas sofridos e tristes melodias. Entre uma nota mais alta e uma curva mais acentuada, assustadamente abria meus olhos. Certificava que o ônibus não havia saído da estrada e voltava a cochilar no ombro de minha mãe que estava protegido por uma blusa de frio em lã. Quente, acolhedor e macio o ombro dela me acomodava e suavizava a dureza do banco.

Outro dia um amigo, enquanto almoçava comigo, contou-me que ele e sua companheira decidiram se separar, “dar um tempo” depois de muitos anos de relacionamento. Embora tenha sido uma decisão do casal, ele disse-me que tinha certeza que eles eram como "a tampa e a panela". Algumas pessoas preferem dizer "a tampa da marmita". Em outras palavras, foram feitos um para o outro. Isso me fez pensar na história dele, na minha, na de tantas pessoas e, em especial, na história de minha mãe com suas panelas.

Têm muito a nos ensinar as panelas e suas tampas ou as tampas e suas panelas.

Fico pensando nas vezes em que, pela dureza e força das nossas mãos, “amassamos as tampas” – as pessoas – para que elas se encaixem em nossa panela, em nosso jeito de ser. Pensamento e atitude egoístas.

Pobre tampa! Aceita e permite ser amassada para satisfazer a vontade, inconseqüente e delirante, da panela. E a panela, em sua “redondice”, não permite a tampa ser “apenas tampa” e, muito menos, dá espaço para que outra tampa possa nela se encaixar.

Quantas vezes encontramos tampas que abafam, sufocam e impedem a saída do calor? São tampas que estragam o “cozimento” da relação. Nesses casos, seria melhor ficar sem tampa ou amassá-la? Tem algum problema ser panela sem tampa ou tampa sem panela?

Já vi e saboreei pratos deliciosos que foram produzidos e cozidos sem o sufoco da tampa.

Por outro lado, já acompanhei histórias de panelas que se amassaram para que a tampa pudesse ter o encaixe perfeito. Pessoas que se anularam, deixaram a sua subjetividade ser seqüestrada - como disse Padre Fábio de Melo em seu livro Quem me roubou de mim.

Pobres panelas! Por não terem identificado a razão de ser e existir, escolhem passar pela dor do amasso que entorta, deforma, machuca, maltrata, fere...

Cito novamente Padre Fábio de Melo: “Há pessoas que nos roubam... Há pessoas que nos devolvem.”

A mudança é saudável. Por causa dela você até pode perder sua tampa ou sua panela. Mas ela também possibilita a mágica do encontro. Se formos panelas, podemos encontrar novas tampas. Se formos tampas, as mudanças nos possibilitam encontrar novas panelas. As mudanças também aproximam panelas de panelas e tampas de tampas. Eis a diversidade alternando, e não alterando, o segredo do encaixe! Encaixe sem perfeição. No entanto, um encaixe tão humano quanto deve ser.

Fico pensando nas vezes em que subimos tantas ladeiras, descemos tantos morros para procurar, nas barracas, tampas para nossas panelas ou panelas para nossas tampas. Temos perdido a serenidade para esperar. Às vezes, pela pressa, pagamos caro e damos todas as nossas economias para ter uma panela ou uma tampa ao nosso lado!

Mas, convenhamos! Como é bom ter um ombro quente, acolhedor e macio para acomodar nosso corpo cansado depois de cochilar num banco duro de ônibus. Pode ser que não seja o ombro com o melhor encaixe. Mas é um ombro.

Quanto aos amassos na panela ou na tampa que facilitam o encaixe, eles acontecerão sem a força de nossas mãos ou sem os tombos que podemos dar nelas. É o movimento natural da vida, da descoberta de si e do outro. É a acomodação silenciosa que surge do ceder sem agredir.

Tenho aprendido a não querer o encaixe perfeito, o leite gelado ou somente com farinha de mandioca. Em minha casa, além das panelas de alumínio que eram de minha mãe, existem outras em teflon. Outras duas, que não são minhas e que agora moram comigo, foram feitas em pedra.