domingo, 14 de novembro de 2010

Sapatos marrons

Gosto mais dos sapatos em cor marrom. Acho que eles combinam com uma maior quantidade de roupas. Tenho muitos deles. Alguns mais usados que outros e, por isso, mais macios e confortáveis.


Há pouco aprendi a usar aqueles em tons mais claros, embora ainda tenha preguiça de limpar a poeira que, teimosamente, gruda neles.

Contava minha mãe...

...Eu era pequeno, criança com quatro ou cinco anos, quando resolvi colocar minhas “botinhas ortopédicas” pra secar. Exagerei um pouco no calor. As coloquei tão perto do fogão à lenha que o fogo as entortou.

As botas ortopédicas, tão alinhadas e que ajudariam a concertar meus tortos passos, estavam agora tão enrugadas e deformadas que mal cabiam meus dedos.

Engraçado que tenho vaga lembrança dessa cena, mas ainda sinto e lembro-me, com exatidão, da surra de carinho e gargalha que ganhei de minha mãe pela minha proeza.

Houve época em que eu ganhava, anualmente, um tênis Rainha. Era em cor preta com ponta em cor branca. Ele não me dava trabalho para limpá-lo. Minha mãe fazia isso por mim. Não importava a ocasião, ele sempre estava nos pés. Isso foi na década de 80. Ano após ano, o tênis comprado era o mesmo.

Foi em 1983 que ganhei um sapato social. Eu e minha mãe andamos muito, a pé, até encontrar um sapato que coubesse nos meus pés e no bolso dela. O pouco dinheiro que tínhamos vinha das “malas de roupa” que ela lavava para os vizinhos ou então das latas de cimento carregadas pelo meu pai enquanto trabalhava como servente de pedreiro nas construções da cidade.

Os sapatos - lembro-me apenas dessas duas situações - foram usados na minha Primeira Eucaristia e no casamento de minha irmã mais velha. Eles também eram marrons.

A viagem estava combinada. Malas feitas. Seria de ônibus e sairíamos bem cedo para a casa de minha avó, mãe de meu pai, no Alto Paranaíba. Era véspera da viagem quando, por desobediência a minha mãe, peguei a bicicleta de meu pai e fui dar uma “voltinha” pelas ruas do bairro.

Avenida comprida, sem asfalto. Em alguns trechos, muito esburacada. Em outros, com muita poeira e cascalho. Eu adorava soltar a mão do guidão, fechar os olhos e deixar o embalo das rodas me levar.

Bicicleta na “banguela”. Pé esquerdo que escorregou do pedal. Cascalho que comeu a ponta do dedão. Surra em casa pela desobediência. Choro pelo ferimento e pela surra. Sapato que não poderia ser calçado. Viagem cancelada. Tristeza.

Seria meu primeiro ano no colegial, seis ou sete anos depois do incidente com a bicicleta - não estou certo da data - a unha do dedão, àquele mesmo que foi comido pelo cascalho, encravou.

Encravou. Palavra esquisita essa. Pior é a dor que ela provoca. Começou no pé esquerdo e depois terminou no direito. Eram duas unhas encravadas. Eram dois pés sem sapatos. Somente chinelos os protegiam. Eram da marca Rider. Isso durou um bom tempo; penso que uns cinco meses ou mais. Nunca gostei de andar descalço.

Prefiro sapatos marrons que tenham cadarços. Eles dão mais firmeza. Sem eles, os sapatos costumam escapar dos meus pés magros e compridos. É pela manhã que os coloco nos pés. Eles me acompanham o dia todo, até o entardecer.

É o Sol, quando está terminando de se esconder, que pede para os sapatos marrons serem trocados por um tênis preto.

Tênis que, a pedido da noite que chegou, são trocados pelos chinelos. Não importa a cor. Sempre uso para tomar banho.

Chinelos que, a pedido do sono, são trocados pelo edredom. O meu preferido é azul. Os pés estão sempre protegidos.

Os cadarços dão firmeza, mas, por vezes, nos privam de experimentar e viver sensações diferentes do calor protetor dos sapatos. Como é bom desamarrar os cadarços. Tenho sentido tantas sensações diferentes, como o frio do piso que agora refresca essa tarde quente de domingo.

Sou feliz por ter aprendido a queimar as “botinhas ortopédicas” que, arrogantemente e presunçosamente, desejam endireitar o que não precisa ser endireitado. Cada vez que “queimo” uma dessas “botinhas”, sinto-me mais livre para ser e caminhar do meu jeito, com meus próprios pés.

Tenho aprendido a cuidar, sem preguiça, daqueles que nos confortam com sua maciez.

Sei que em algum momento vou dar alguns escorregões no pedal e, por certo, meu dedão será roído pelo cascalho. Agora sei que, por causa disso, não será preciso desistir da viagem. Basta calçar um chinelo, como fiz no colegial.

Passam as dores por causa dos tombos e das surras. Passam também as dores provocadas pelas unhas encravadas. Mesmo que durem cinco ou mais meses.

domingo, 14 de março de 2010

Panelas de pedra

Quando criança, para tomar leite, preferi um copo de alumínio a mamadeira. Lembro-me que ele era muito amassado. Talvez pelos tombos que eu nele dava ou pelas mãos pesadas de minha mãe no momento de lavá-lo. Era nesse copo que tomava leite frio com farinha de mandioca. Naquela época não tínhamos geladeira. Gosto de leite puro, gelado.

Assim como o copo, as panelas de nossa casa, por um longo tempo, foram amassadas. Algumas vezes era necessário amassar ou desamassar a tampa para ela se encaixar na panela. Outras vezes era necessário amassar ou desamassar a panela para ela se encaixar na tampa. E em tantas outras vezes o amassar e desamassar não possibilitou o encaixe. Pelo contrário, abriram novas frestas por onde saia o calor.

Entre uma mudança e outra, algumas se perdiam de suas tampas. Pensando nisso agora, pode ser que as tampas é que se perdiam das panelas. Ou, quem sabe, as duas resolveram se separar.

Embora juntasse seu dinheirinho para aumentar seu acervo, minha mãe foi uma mulher de poucas panelas. Gostava de cozinhar e fazia isso com maestria. Eu, nem tanto.

Agosto era o mês escolhido para investir parte de suas economias. Depois de subir as ladeiras de Romaria – cidade no interior de Minas Gerais - e enfrentar um mar de pessoas devotas a Nossa Senhora da Abadia, ela se ajoelhava para subir os degraus da igreja. Entre a dificuldade de subir um degrau e outro, ela rezava, fazia suas preces e cumpria suas promessas – ora e outra ela se lembrava de respirar, mesmo ofegante.

Com a fé renovada, a energia nem tanto, ela caminhava até as barracas que vendiam de tudo um pouco e ficavam espalhadas pela cidade. Recolhiam as suas economias as barracas que vendiam à ela as panelas em alumínio batido, com cabo de madeira e tampas que se encaixavam perfeitamente.

Comigo e com ela, as panelas vinham para a nossa cidade num ônibus de banco duro. Não tínhamos carro naquela época e, por isso, íamos para Romaria e voltávamos de lá numa excursão. De nossa cidade o ônibus saia cedo, bem cedo, de madrugada. Pelo longo caminho, as senhoras puxavam as preces e os cantos religiosos com temas sofridos e tristes melodias. Entre uma nota mais alta e uma curva mais acentuada, assustadamente abria meus olhos. Certificava que o ônibus não havia saído da estrada e voltava a cochilar no ombro de minha mãe que estava protegido por uma blusa de frio em lã. Quente, acolhedor e macio o ombro dela me acomodava e suavizava a dureza do banco.

Outro dia um amigo, enquanto almoçava comigo, contou-me que ele e sua companheira decidiram se separar, “dar um tempo” depois de muitos anos de relacionamento. Embora tenha sido uma decisão do casal, ele disse-me que tinha certeza que eles eram como "a tampa e a panela". Algumas pessoas preferem dizer "a tampa da marmita". Em outras palavras, foram feitos um para o outro. Isso me fez pensar na história dele, na minha, na de tantas pessoas e, em especial, na história de minha mãe com suas panelas.

Têm muito a nos ensinar as panelas e suas tampas ou as tampas e suas panelas.

Fico pensando nas vezes em que, pela dureza e força das nossas mãos, “amassamos as tampas” – as pessoas – para que elas se encaixem em nossa panela, em nosso jeito de ser. Pensamento e atitude egoístas.

Pobre tampa! Aceita e permite ser amassada para satisfazer a vontade, inconseqüente e delirante, da panela. E a panela, em sua “redondice”, não permite a tampa ser “apenas tampa” e, muito menos, dá espaço para que outra tampa possa nela se encaixar.

Quantas vezes encontramos tampas que abafam, sufocam e impedem a saída do calor? São tampas que estragam o “cozimento” da relação. Nesses casos, seria melhor ficar sem tampa ou amassá-la? Tem algum problema ser panela sem tampa ou tampa sem panela?

Já vi e saboreei pratos deliciosos que foram produzidos e cozidos sem o sufoco da tampa.

Por outro lado, já acompanhei histórias de panelas que se amassaram para que a tampa pudesse ter o encaixe perfeito. Pessoas que se anularam, deixaram a sua subjetividade ser seqüestrada - como disse Padre Fábio de Melo em seu livro Quem me roubou de mim.

Pobres panelas! Por não terem identificado a razão de ser e existir, escolhem passar pela dor do amasso que entorta, deforma, machuca, maltrata, fere...

Cito novamente Padre Fábio de Melo: “Há pessoas que nos roubam... Há pessoas que nos devolvem.”

A mudança é saudável. Por causa dela você até pode perder sua tampa ou sua panela. Mas ela também possibilita a mágica do encontro. Se formos panelas, podemos encontrar novas tampas. Se formos tampas, as mudanças nos possibilitam encontrar novas panelas. As mudanças também aproximam panelas de panelas e tampas de tampas. Eis a diversidade alternando, e não alterando, o segredo do encaixe! Encaixe sem perfeição. No entanto, um encaixe tão humano quanto deve ser.

Fico pensando nas vezes em que subimos tantas ladeiras, descemos tantos morros para procurar, nas barracas, tampas para nossas panelas ou panelas para nossas tampas. Temos perdido a serenidade para esperar. Às vezes, pela pressa, pagamos caro e damos todas as nossas economias para ter uma panela ou uma tampa ao nosso lado!

Mas, convenhamos! Como é bom ter um ombro quente, acolhedor e macio para acomodar nosso corpo cansado depois de cochilar num banco duro de ônibus. Pode ser que não seja o ombro com o melhor encaixe. Mas é um ombro.

Quanto aos amassos na panela ou na tampa que facilitam o encaixe, eles acontecerão sem a força de nossas mãos ou sem os tombos que podemos dar nelas. É o movimento natural da vida, da descoberta de si e do outro. É a acomodação silenciosa que surge do ceder sem agredir.

Tenho aprendido a não querer o encaixe perfeito, o leite gelado ou somente com farinha de mandioca. Em minha casa, além das panelas de alumínio que eram de minha mãe, existem outras em teflon. Outras duas, que não são minhas e que agora moram comigo, foram feitas em pedra.