segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Meus heróis estão morrendo

Houve época, na infância, em que eu passava grande parte do meu tempo a desenhar. Em cada traço, se traçava uma história criada para encobrir a falta de brinquedos.

A outra parte, que não era mais tão grande, eu dividia entre a escola e as brincadeiras de rua. Uma das minhas favoritas era, sem dúvida, a bandeirinha.

Um risco, feito com a ajuda de uma pedra, dividia o chão de terra ao meio. De um lado, meninos e meninas. Do outro, também. De um lado, um galho de árvore. Do outro, também.

O desafio era pegar a bandeirinha que estava no lado oposto. A bandeirinha – esse galho de árvore sempre protegido das mãos dos moleques e molecas ofegantes por causa do carreirão e das investidas para invadir o território do adversário.

No dicionário, carreirão vem de caminho estreito, atalho. Para meus pais foi sinônimo de que alguém tinha ou deveria correr muito, depressa, afoito, ligeiro, a passos largos, sem olhar prá traz.

Num sábado a noite, talvez depois de ter brincado de bandeirinha e tomado uma Soda Limonada bem gelada, deitei-me no banquinho - um banco duro, de madeira e que ficava no boteco dos meus pais. Devia ter um metro e meio de comprimento – tamanho mais que suficiente para descansar as pernas tremulas por causa do carreirão. Eu sempre adormecia nesse banco enquanto esperava meus pais fecharem o boteco.

Uma TV Colorado, preto e branco, se punha à frente desse colchão de madeira. Foi por ela que assisti, pela primeira vez, a mocinha do filme ser convidada para voar e não para dançar. E, sejamos sinceros, uma forma, no mínimo, mais criativa e romântica de causar frio na barriga a uma dama – muito melhor que uma montanha russa. No caso do Superman, com Christopher Reeve, diria que foi genuína; típica de um homem que podia voar.

Na minha casa de infância tinha um pé de chuchu. Honestamente, devia ter uns três. Minha cidade não era tão quente como agora, as pessoas ainda sentavam na porta de casa para conversar com os vizinhos ou escutar, sob o sereno, as canções das cigarras e as músicas da rádio AM. Pés de abacate, laranja, limão, goiaba, banana, mandioca, couve, alho e romã também compunham a decoração do nosso quintal. Entre um pé e outro, algumas galinhas ciscavam o terreiro enquanto num pequeno chiqueiro alguns capados estavam sendo engordados para serem vendidos no Natal.

Vez e outra a Dilza, minha prima, pousava lá em casa. Pousava de dormir, repousar. O fim da noite, antes de ir prá cama, era de sopa de macarrão com Chuchu feito por ela e minhas duas irmãs. Tudo isso para assistirmos à série As Panteras. Hoje, prefiro pizza ou uma boa e grande barra de chocolate com flocos de arroz.

Da década de 70, foi um seriado americano exibido no Brasil por muitos anos. A Dilza incorporava a personagem Jill (Farrah Fawcett), minha irmã mais velha a Sabrina (Kate Jackson) e a do meio, pois o mais novo sou eu, a Kelly (Jaclyn Smith). Eram noites memoráveis. Tenho saudades delas. Das noites, das Panteras e da molequice da Jill.

Hoje, quando visito minha prima, ao invés da sopa de macarrão com chuchu comemos macarrão seco. É como chamamos, carinhosamente aqui no interior, o macarrão ao molho de massa de tomate.

Eu tinha treze anos quando quis dançar como Johnny Castle. Na mesma ocasião estavam surgindo, vagarosamente e com enormes rádios, os grupos de dança de rua. Preferi colocar as pernas a caminho da escola. Só dancei quadrilha.

O pensamento na dança veio pelo molejo e vibração do ritmo frenético de Johnny Castle, personagem vivido por Patrick Swayze no filme Dirty Dancing.

Digo que ele foi tão original quanto o Superman ao usar, seu poder da dança, para conquistar Baby, a mocinha vivida por Jennifer Grey, e dançar com ela a última música que encerraria as festividades da colônia de férias de 1963. Depois da quadrilha, já dancei muitas vezes e vários outros estilos. Até que sou bom nisso.

Uma queda enquanto cavalgava pôs fim nas asas do Superman (Christopher Reeve). Um câncer corroeu a vida de Jill (Farrah Fawcett) e Johnny (Patrick Swayze). Foram tão heróis quanto humanos, corajosos e fortes como toda criança que, no carrerião, busca pela bandeirinha no território do adversário. Penso que buscaram pela vida com a mesma sede que eu buscava pela bandeirinha e Soda Limonada gelada.

Assim como meus olhos brilhavam quando os viam coloridos, pela tv em preto e branco, acredito que os olhos deles brilhavam a cada possibilidade de cura que surgia para colorir seus dias cinzentos.

A sopa de macarrão com chuchu não é mais ou menos saborosa que o macarrão seco. As companhias, as pessoas que estão do nosso lado são os melhores temperos. Como gosto do tempero que minha família coloca na minha vida.

Quando mantemos na fase adulta a leveza da criança, é possível dormir sossegadamente num banquinho duro ou dedicar parte do nosso tempo para desenhar com giz colorido as histórias que desejamos viver.

A graça da vida, não de ser divertida e sim de ser repleta de benevolência, consiste exatamente nisso: nos presentear com asas, molequice e ritmo para dançar e ziquezaguear por jardins coloridos quando o mato seco e os dias sem cores insistem em compor a decoração do nosso quintal.

Sejamos homens e mulheres de aço que não se deixam ser divididos pelo risco da pedra que exclui, limita e segrega.

Sejamos heróis tão humanos, corajosos e fortes para não curvarmos diante dos adversários – situações da vida - que possam querer tomar a nossa bandeirinha.

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Tenho três pares de chinelos

Foi na minha adolescência que aprendi a arrumar minha cama. Não que eu gostasse. Não podia ir à escola sem arrumá-la. Minha mãe foi bastante rígida com isso também.

Não fui diferente de outras crianças ou adolescentes. Também não gostava de levantar cedo e ainda mais prá ir à escola. Agora, diariamente estou de pé às 06h.

Ainda sinto saudades do cheiro do café vindo da cozinha, passado pelo coador de pano, e do rádio sintonizado em modas de viola enquanto sua voz grave e militar me intimava a sair do conforto daquele ninho quente e protetor. Naquela época o colchão era de palha, trazido da roça.

Fingia estar num sono profundo. Com seu jeito impaciente e despachado, pedia para meu vagaroso pai chamar-me. Ele saia irritado do quarto por eu, sequer, mexer um olho após sua insistência e vários cutucões. Depois disso, sim! Estava pronto para deixar as cobertas.

Eram três. Todas tecidas, linha a linha, em algodão. Duas delas em tons esverdeados e a outra em mostarda. As roupas de cama nunca combinavam.

Muito claros e macios, na infância dormi em lençóis feitos de pano de saco, alvejados pela água sanitária e sabão de bola feito pela minha mãe.

A mochila, em brim. De papel de pão as capas dos cadernos e livros. Todos muito bem cuidados, obrigado. Só podiam ser pegos depois da cama arrumada e café tomado. Gostava de molhar o pão no café.

Meus pais nunca se preocuparam se eu havia ou não feito o dever de casa. Tinham outras preocupações. Eu sempre fazia.

Cansados, eles já não conseguiam cuidar de tudo. Aprendi a arrumar a cama. Agora tinha também que arrumar a casa. Pelo menos aqui em Minas, a gente troca a palavra organizar por arrumar. Da mesma forma, “lavamustrem” ao invés de “lavamos a louça”.

Ela sempre deixava os chinelos debaixo da mesa da cozinha. Isso era um desleixo para quem tinha aprendido, com ela, a cuidar da casa. Não foram poucas às vezes em que discuti com minha mãe por causa disso. Havaianas com tiras azuis e um leve desgaste onde o dedão se acomodava e apertava.

Foi logo após o enterro de minha mãe que lavei toda a casa. No outro dia acordei sem o cheiro do café. Olhei prá mesa. Os chinelos não estavam debaixo dela. Nunca mais tive que guardá-los. Também não guardei o choro.

Na semana passada passei pela recepção da empresa onde trabalho. Lá tem um balcão enorme e sobre ele algumas revistas. Estavam todas fora do lugar ou como podemos dizer “bagunçadas”. Algumas sobre o sofá e o balcão e outras sobre uma das mesas que também ficam por lá. Oficialmente, não seria minha responsabilidade, todavia organizei-as enquanto resmungava mentalmente sobre a falta de educação e cuidado das pessoas.

Tem dias que tropeço nos sapatos que deixo pelo quarto. É, geralmente, no fim de semana que consigo colocar as coisas no lugar. Ainda bem que posso me desculpar pela correria do dia-a-dia.

Tenho uma “quinzenalista” que cuida da casa. Eu sou o “semanalista”. Acredito que não exista esta expressão. Gosto de imprimir o “meu jeito” na casa. Várias pessoas preferem dizer “colocar a nossa energia na casa”.

O anoitecer está trazendo uma noite possivelmente fria e um chuvisco manso – àquele que coloca quietação e brandura no sono. Com suas paredes claras, ela já me cobre e aquece. Em gratidão e respeito por essa acolhida diária, dedico parte do meu tempo para cuidar da minha casa, das coisas que tenho e das pessoas que amo.

Macio e de mola é o colchão que me aguarda numa cama que não foi arrumada – do jeito da minha mãe - desde cedo. Há tempos arrumo a cama do meu jeito. Aprendi que os filhos quando não se arrumam – deixam de se organizar internamente - repetem por uma vida o comportamento dos pais. É fascinante ser gente do jeito da gente.

Enquanto arrumo a minha casa física – a de tijolos – também arrumo a minha casa interior que se traduz, na verdade, em minhas emoções, afetos, desafetos, sentimentos e ressentimentos. Ressentir que não vem de mágoa, mas de sentir outra vez, de outra forma, com diferente intensidade, num novo momento, num novo eu.

É muito bom quando colocamos “nossos sapatos no lugar” – nossos pensamentos, sentimentos, afetos e desafetos, a vida - cada um em sua prateleira. Isso evita muitos esbarrões e tombos indesejados, principalmente quando vamos ao banheiro à noite sem acender a luz.

Às vezes impomos às pessoas o nosso “jeito de organizar” – o nosso jeito de ser e fazer as coisas. A sensatez e o respeito devem estar presentes quando pedimos a alguém para tirar seus chinelos debaixo da mesa.

Por outro lado, em algumas situações é mais inteligente e prudente deixar nossos chinelos – nossa vida, nossos afetos e desafetos, sentimentos e pensamentos – como e onde estão.

Nem sempre os chinelos debaixo da mesa desarrumam a casa. Hoje percebo que, no caso da minha mãe, eles nunca desarrumaram nada. Tudo estava no seu devido lugar.

A água do choro, ou àquela que usei para lavar a casa e as louças, serve para a mesma coisa: lavar, alvejar os lençóis e as linhas em algodão coloridas que tecem a coberta da vida que nos aninha e descansa.

Que acordemos cedo, sem ser chamados ou cutucados, para cuidar e arrumar a nossa cama e a casa. Não precisaremos, pois, usar a “desculpa da correria do dia-a-dia” para e por não sermos gratos, respeitosos e dedicados em cuidar de si, do outro e das coisas. Tenho três pares de chinelos.