domingo, 14 de novembro de 2010

Sapatos marrons

Gosto mais dos sapatos em cor marrom. Acho que eles combinam com uma maior quantidade de roupas. Tenho muitos deles. Alguns mais usados que outros e, por isso, mais macios e confortáveis.


Há pouco aprendi a usar aqueles em tons mais claros, embora ainda tenha preguiça de limpar a poeira que, teimosamente, gruda neles.

Contava minha mãe...

...Eu era pequeno, criança com quatro ou cinco anos, quando resolvi colocar minhas “botinhas ortopédicas” pra secar. Exagerei um pouco no calor. As coloquei tão perto do fogão à lenha que o fogo as entortou.

As botas ortopédicas, tão alinhadas e que ajudariam a concertar meus tortos passos, estavam agora tão enrugadas e deformadas que mal cabiam meus dedos.

Engraçado que tenho vaga lembrança dessa cena, mas ainda sinto e lembro-me, com exatidão, da surra de carinho e gargalha que ganhei de minha mãe pela minha proeza.

Houve época em que eu ganhava, anualmente, um tênis Rainha. Era em cor preta com ponta em cor branca. Ele não me dava trabalho para limpá-lo. Minha mãe fazia isso por mim. Não importava a ocasião, ele sempre estava nos pés. Isso foi na década de 80. Ano após ano, o tênis comprado era o mesmo.

Foi em 1983 que ganhei um sapato social. Eu e minha mãe andamos muito, a pé, até encontrar um sapato que coubesse nos meus pés e no bolso dela. O pouco dinheiro que tínhamos vinha das “malas de roupa” que ela lavava para os vizinhos ou então das latas de cimento carregadas pelo meu pai enquanto trabalhava como servente de pedreiro nas construções da cidade.

Os sapatos - lembro-me apenas dessas duas situações - foram usados na minha Primeira Eucaristia e no casamento de minha irmã mais velha. Eles também eram marrons.

A viagem estava combinada. Malas feitas. Seria de ônibus e sairíamos bem cedo para a casa de minha avó, mãe de meu pai, no Alto Paranaíba. Era véspera da viagem quando, por desobediência a minha mãe, peguei a bicicleta de meu pai e fui dar uma “voltinha” pelas ruas do bairro.

Avenida comprida, sem asfalto. Em alguns trechos, muito esburacada. Em outros, com muita poeira e cascalho. Eu adorava soltar a mão do guidão, fechar os olhos e deixar o embalo das rodas me levar.

Bicicleta na “banguela”. Pé esquerdo que escorregou do pedal. Cascalho que comeu a ponta do dedão. Surra em casa pela desobediência. Choro pelo ferimento e pela surra. Sapato que não poderia ser calçado. Viagem cancelada. Tristeza.

Seria meu primeiro ano no colegial, seis ou sete anos depois do incidente com a bicicleta - não estou certo da data - a unha do dedão, àquele mesmo que foi comido pelo cascalho, encravou.

Encravou. Palavra esquisita essa. Pior é a dor que ela provoca. Começou no pé esquerdo e depois terminou no direito. Eram duas unhas encravadas. Eram dois pés sem sapatos. Somente chinelos os protegiam. Eram da marca Rider. Isso durou um bom tempo; penso que uns cinco meses ou mais. Nunca gostei de andar descalço.

Prefiro sapatos marrons que tenham cadarços. Eles dão mais firmeza. Sem eles, os sapatos costumam escapar dos meus pés magros e compridos. É pela manhã que os coloco nos pés. Eles me acompanham o dia todo, até o entardecer.

É o Sol, quando está terminando de se esconder, que pede para os sapatos marrons serem trocados por um tênis preto.

Tênis que, a pedido da noite que chegou, são trocados pelos chinelos. Não importa a cor. Sempre uso para tomar banho.

Chinelos que, a pedido do sono, são trocados pelo edredom. O meu preferido é azul. Os pés estão sempre protegidos.

Os cadarços dão firmeza, mas, por vezes, nos privam de experimentar e viver sensações diferentes do calor protetor dos sapatos. Como é bom desamarrar os cadarços. Tenho sentido tantas sensações diferentes, como o frio do piso que agora refresca essa tarde quente de domingo.

Sou feliz por ter aprendido a queimar as “botinhas ortopédicas” que, arrogantemente e presunçosamente, desejam endireitar o que não precisa ser endireitado. Cada vez que “queimo” uma dessas “botinhas”, sinto-me mais livre para ser e caminhar do meu jeito, com meus próprios pés.

Tenho aprendido a cuidar, sem preguiça, daqueles que nos confortam com sua maciez.

Sei que em algum momento vou dar alguns escorregões no pedal e, por certo, meu dedão será roído pelo cascalho. Agora sei que, por causa disso, não será preciso desistir da viagem. Basta calçar um chinelo, como fiz no colegial.

Passam as dores por causa dos tombos e das surras. Passam também as dores provocadas pelas unhas encravadas. Mesmo que durem cinco ou mais meses.

domingo, 14 de março de 2010

Panelas de pedra

Quando criança, para tomar leite, preferi um copo de alumínio a mamadeira. Lembro-me que ele era muito amassado. Talvez pelos tombos que eu nele dava ou pelas mãos pesadas de minha mãe no momento de lavá-lo. Era nesse copo que tomava leite frio com farinha de mandioca. Naquela época não tínhamos geladeira. Gosto de leite puro, gelado.

Assim como o copo, as panelas de nossa casa, por um longo tempo, foram amassadas. Algumas vezes era necessário amassar ou desamassar a tampa para ela se encaixar na panela. Outras vezes era necessário amassar ou desamassar a panela para ela se encaixar na tampa. E em tantas outras vezes o amassar e desamassar não possibilitou o encaixe. Pelo contrário, abriram novas frestas por onde saia o calor.

Entre uma mudança e outra, algumas se perdiam de suas tampas. Pensando nisso agora, pode ser que as tampas é que se perdiam das panelas. Ou, quem sabe, as duas resolveram se separar.

Embora juntasse seu dinheirinho para aumentar seu acervo, minha mãe foi uma mulher de poucas panelas. Gostava de cozinhar e fazia isso com maestria. Eu, nem tanto.

Agosto era o mês escolhido para investir parte de suas economias. Depois de subir as ladeiras de Romaria – cidade no interior de Minas Gerais - e enfrentar um mar de pessoas devotas a Nossa Senhora da Abadia, ela se ajoelhava para subir os degraus da igreja. Entre a dificuldade de subir um degrau e outro, ela rezava, fazia suas preces e cumpria suas promessas – ora e outra ela se lembrava de respirar, mesmo ofegante.

Com a fé renovada, a energia nem tanto, ela caminhava até as barracas que vendiam de tudo um pouco e ficavam espalhadas pela cidade. Recolhiam as suas economias as barracas que vendiam à ela as panelas em alumínio batido, com cabo de madeira e tampas que se encaixavam perfeitamente.

Comigo e com ela, as panelas vinham para a nossa cidade num ônibus de banco duro. Não tínhamos carro naquela época e, por isso, íamos para Romaria e voltávamos de lá numa excursão. De nossa cidade o ônibus saia cedo, bem cedo, de madrugada. Pelo longo caminho, as senhoras puxavam as preces e os cantos religiosos com temas sofridos e tristes melodias. Entre uma nota mais alta e uma curva mais acentuada, assustadamente abria meus olhos. Certificava que o ônibus não havia saído da estrada e voltava a cochilar no ombro de minha mãe que estava protegido por uma blusa de frio em lã. Quente, acolhedor e macio o ombro dela me acomodava e suavizava a dureza do banco.

Outro dia um amigo, enquanto almoçava comigo, contou-me que ele e sua companheira decidiram se separar, “dar um tempo” depois de muitos anos de relacionamento. Embora tenha sido uma decisão do casal, ele disse-me que tinha certeza que eles eram como "a tampa e a panela". Algumas pessoas preferem dizer "a tampa da marmita". Em outras palavras, foram feitos um para o outro. Isso me fez pensar na história dele, na minha, na de tantas pessoas e, em especial, na história de minha mãe com suas panelas.

Têm muito a nos ensinar as panelas e suas tampas ou as tampas e suas panelas.

Fico pensando nas vezes em que, pela dureza e força das nossas mãos, “amassamos as tampas” – as pessoas – para que elas se encaixem em nossa panela, em nosso jeito de ser. Pensamento e atitude egoístas.

Pobre tampa! Aceita e permite ser amassada para satisfazer a vontade, inconseqüente e delirante, da panela. E a panela, em sua “redondice”, não permite a tampa ser “apenas tampa” e, muito menos, dá espaço para que outra tampa possa nela se encaixar.

Quantas vezes encontramos tampas que abafam, sufocam e impedem a saída do calor? São tampas que estragam o “cozimento” da relação. Nesses casos, seria melhor ficar sem tampa ou amassá-la? Tem algum problema ser panela sem tampa ou tampa sem panela?

Já vi e saboreei pratos deliciosos que foram produzidos e cozidos sem o sufoco da tampa.

Por outro lado, já acompanhei histórias de panelas que se amassaram para que a tampa pudesse ter o encaixe perfeito. Pessoas que se anularam, deixaram a sua subjetividade ser seqüestrada - como disse Padre Fábio de Melo em seu livro Quem me roubou de mim.

Pobres panelas! Por não terem identificado a razão de ser e existir, escolhem passar pela dor do amasso que entorta, deforma, machuca, maltrata, fere...

Cito novamente Padre Fábio de Melo: “Há pessoas que nos roubam... Há pessoas que nos devolvem.”

A mudança é saudável. Por causa dela você até pode perder sua tampa ou sua panela. Mas ela também possibilita a mágica do encontro. Se formos panelas, podemos encontrar novas tampas. Se formos tampas, as mudanças nos possibilitam encontrar novas panelas. As mudanças também aproximam panelas de panelas e tampas de tampas. Eis a diversidade alternando, e não alterando, o segredo do encaixe! Encaixe sem perfeição. No entanto, um encaixe tão humano quanto deve ser.

Fico pensando nas vezes em que subimos tantas ladeiras, descemos tantos morros para procurar, nas barracas, tampas para nossas panelas ou panelas para nossas tampas. Temos perdido a serenidade para esperar. Às vezes, pela pressa, pagamos caro e damos todas as nossas economias para ter uma panela ou uma tampa ao nosso lado!

Mas, convenhamos! Como é bom ter um ombro quente, acolhedor e macio para acomodar nosso corpo cansado depois de cochilar num banco duro de ônibus. Pode ser que não seja o ombro com o melhor encaixe. Mas é um ombro.

Quanto aos amassos na panela ou na tampa que facilitam o encaixe, eles acontecerão sem a força de nossas mãos ou sem os tombos que podemos dar nelas. É o movimento natural da vida, da descoberta de si e do outro. É a acomodação silenciosa que surge do ceder sem agredir.

Tenho aprendido a não querer o encaixe perfeito, o leite gelado ou somente com farinha de mandioca. Em minha casa, além das panelas de alumínio que eram de minha mãe, existem outras em teflon. Outras duas, que não são minhas e que agora moram comigo, foram feitas em pedra.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

A janela de meu quarto está aberta.

São por volta das 23h45 quando me deito depois de ter passado o protetor labial. Viro-me de lado, pra direita, e suspiro. Ajeito a cabeça num travesseiro. O braço direito repousa num outro travesseiro enquanto o esquerdo, caído por cima das costelas, pousa a mão até o colchão. Uma perna dobrada. A outra, nem tanto.

Algumas imagens se formam na parede clara pela luz dos faróis que voltam pra casa. Pode ser que também estejam saindo de casa. A claridade vem com o barulho que, frequentemente, é de alguma sirene.

Pela janela fechada não passa o vento e nem as baratas voadoras. No entanto, em poucas noites, sou visitado pela luz da Lua sobre minha cama. Vez em quando ela puxa uma e outra nuvem para se esconder do meu olhar. Tenho percebido que a Lua é muito tímida. Acho que por isso prefere passear pela noite, quando a maioria das pessoas está dormindo.

Olhos amolecidos pelo sono ainda se atentam pelo, por certo, último barulho iluminado que passa pela janela. É um avião branco e laranja. Dizem que ele vem de São Paulo todas as noites. Não que seja tão grande, mas da minha cama ele é. Elegante, pomposo, cheio de luz e ronco ele também é. Sou fascinado por essa invenção. Tenho medo de voar.

Suas grades de ferro foram pintadas em cor laranja, assim como uma das cores do avião. Era um vitrô, simples e com vidro canelado – lembrava uma colméia - um dos tipos mais simples.

Por ele, aos sete anos de idade, via o balanço da sombra do pé de limão que me assustava ao se transformar no “Mão de Pilão”. Quando eu caprichava nas peraltices, minhas irmãs me diziam que o “Mão de Pilão” viria me pegar. Na época, eu acreditava que ele fosse um bandido muito perigoso.

Outros três vitrôs estavam pelos outros três cômodos da casa que não era de tijolos, mas de placa de cimento. No calor era insuportável. No frio também. Das várias casas onde morei, era dela que mais gostava. Porque ela, tão pequena, encurtava meus passos e aumentava a proximidade entre nossa família.

Na minha adolescência, morei numa casa não acabada. Os vitrôs, sem vidros canelados, foram cobertos por papelão. Outros espaços, onde seriam chumbados os vitrôs, receberam pilhas de tijolos sem massa de reboco ou cimento. Era apenas uma barricada contra o vento e a chuva.

Não entrava vento. Não entrava luz. Não entrava chuva. Nossa casa ficou assim por muito tempo. Já tinha me acostumado à sensação de sempre noite ou dia nublado sem chuva.

Minha irmã do meio fez uma cirurgia no coração. Uma das recomendações do médico foi colocá-la num quarto ventilado. Parede quebrada, vitrô retirado, veneziana afixada. Agora a luz do Sol e o vento dançavam e, vez e outra, traziam folhas secas e o desarrumo no lençol. Não era raro ouvir também a braveza da porta do quarto por ter sido fechada pelo vento que, apressadamente, queria arejar toda a casa.

A casa não acabada foi reformada antes de ser terminada. Foi logo depois de minha mãe ter sido encantada.

Por fim, a nova casa recebera o nome de Maria Clara. Uma homenagem justa para um lugar onde, até então, não se via muita luz e nem sentia muito vento. Fui cuidadoso em garantir que a nova casa tivesse muita claridade e ventilação.

Outra noite, pelo calor, mas muito mais pela companhia que ocupava o travesseiro onde repouso meu braço direito, resolvi abrir a janela.

Os visitantes boêmios estavam lá: a Lua, as imagens e o barulho produzidos pelos faróis que voltam ou saem de casa. Não demorou muito até chegar o ronco exuberante da beleza do avião.

Outro compadre, o vento, que há muito andara sumido desde o vitrô da casa não acabada, concedeu o ar da graça. É refrescante matar a saudade de quem deixamos ser levado pela ausência.

É prudente cuidarmos das palavras que dizemos para não descuidarmos das pessoas que as escutam. Algumas palavras, plantadas num coração inocente, podem transformar a sombra do balanço do pé de limão num violento “Mão de Pilão”.

Molhar na chuva e queimar no calor do Sol é melhor que ficar refém dos tijolos empilhados ou dos papelões afixados na grade do vitrô. Empilhamos desculpas para não arriscar.

Maturidade, inteligência ou idade interferem pouco no processo de aprender. Algumas pessoas vão mesmo nos ensinar a abrir as janelas que há tanto tempo foram fechadas pelo medo das baratas voadoras. Abrir janelas é uma decisão decorrente do querer. Matemos algumas baratas para respirarmos um ar renovado e puro numa noite quente de verão.

Dizem que os olhos são as janelas da alma. Por mais que estejam sonolentos, quero manter meus olhos abertos para ver todas as janelas que se abrem depois de algumas portas terem sido fechadas pelo vento, sem maldade, que, apressadamente, queria entrar e arejar toda a casa e não somente o quarto.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Meus heróis estão morrendo

Houve época, na infância, em que eu passava grande parte do meu tempo a desenhar. Em cada traço, se traçava uma história criada para encobrir a falta de brinquedos.

A outra parte, que não era mais tão grande, eu dividia entre a escola e as brincadeiras de rua. Uma das minhas favoritas era, sem dúvida, a bandeirinha.

Um risco, feito com a ajuda de uma pedra, dividia o chão de terra ao meio. De um lado, meninos e meninas. Do outro, também. De um lado, um galho de árvore. Do outro, também.

O desafio era pegar a bandeirinha que estava no lado oposto. A bandeirinha – esse galho de árvore sempre protegido das mãos dos moleques e molecas ofegantes por causa do carreirão e das investidas para invadir o território do adversário.

No dicionário, carreirão vem de caminho estreito, atalho. Para meus pais foi sinônimo de que alguém tinha ou deveria correr muito, depressa, afoito, ligeiro, a passos largos, sem olhar prá traz.

Num sábado a noite, talvez depois de ter brincado de bandeirinha e tomado uma Soda Limonada bem gelada, deitei-me no banquinho - um banco duro, de madeira e que ficava no boteco dos meus pais. Devia ter um metro e meio de comprimento – tamanho mais que suficiente para descansar as pernas tremulas por causa do carreirão. Eu sempre adormecia nesse banco enquanto esperava meus pais fecharem o boteco.

Uma TV Colorado, preto e branco, se punha à frente desse colchão de madeira. Foi por ela que assisti, pela primeira vez, a mocinha do filme ser convidada para voar e não para dançar. E, sejamos sinceros, uma forma, no mínimo, mais criativa e romântica de causar frio na barriga a uma dama – muito melhor que uma montanha russa. No caso do Superman, com Christopher Reeve, diria que foi genuína; típica de um homem que podia voar.

Na minha casa de infância tinha um pé de chuchu. Honestamente, devia ter uns três. Minha cidade não era tão quente como agora, as pessoas ainda sentavam na porta de casa para conversar com os vizinhos ou escutar, sob o sereno, as canções das cigarras e as músicas da rádio AM. Pés de abacate, laranja, limão, goiaba, banana, mandioca, couve, alho e romã também compunham a decoração do nosso quintal. Entre um pé e outro, algumas galinhas ciscavam o terreiro enquanto num pequeno chiqueiro alguns capados estavam sendo engordados para serem vendidos no Natal.

Vez e outra a Dilza, minha prima, pousava lá em casa. Pousava de dormir, repousar. O fim da noite, antes de ir prá cama, era de sopa de macarrão com Chuchu feito por ela e minhas duas irmãs. Tudo isso para assistirmos à série As Panteras. Hoje, prefiro pizza ou uma boa e grande barra de chocolate com flocos de arroz.

Da década de 70, foi um seriado americano exibido no Brasil por muitos anos. A Dilza incorporava a personagem Jill (Farrah Fawcett), minha irmã mais velha a Sabrina (Kate Jackson) e a do meio, pois o mais novo sou eu, a Kelly (Jaclyn Smith). Eram noites memoráveis. Tenho saudades delas. Das noites, das Panteras e da molequice da Jill.

Hoje, quando visito minha prima, ao invés da sopa de macarrão com chuchu comemos macarrão seco. É como chamamos, carinhosamente aqui no interior, o macarrão ao molho de massa de tomate.

Eu tinha treze anos quando quis dançar como Johnny Castle. Na mesma ocasião estavam surgindo, vagarosamente e com enormes rádios, os grupos de dança de rua. Preferi colocar as pernas a caminho da escola. Só dancei quadrilha.

O pensamento na dança veio pelo molejo e vibração do ritmo frenético de Johnny Castle, personagem vivido por Patrick Swayze no filme Dirty Dancing.

Digo que ele foi tão original quanto o Superman ao usar, seu poder da dança, para conquistar Baby, a mocinha vivida por Jennifer Grey, e dançar com ela a última música que encerraria as festividades da colônia de férias de 1963. Depois da quadrilha, já dancei muitas vezes e vários outros estilos. Até que sou bom nisso.

Uma queda enquanto cavalgava pôs fim nas asas do Superman (Christopher Reeve). Um câncer corroeu a vida de Jill (Farrah Fawcett) e Johnny (Patrick Swayze). Foram tão heróis quanto humanos, corajosos e fortes como toda criança que, no carrerião, busca pela bandeirinha no território do adversário. Penso que buscaram pela vida com a mesma sede que eu buscava pela bandeirinha e Soda Limonada gelada.

Assim como meus olhos brilhavam quando os viam coloridos, pela tv em preto e branco, acredito que os olhos deles brilhavam a cada possibilidade de cura que surgia para colorir seus dias cinzentos.

A sopa de macarrão com chuchu não é mais ou menos saborosa que o macarrão seco. As companhias, as pessoas que estão do nosso lado são os melhores temperos. Como gosto do tempero que minha família coloca na minha vida.

Quando mantemos na fase adulta a leveza da criança, é possível dormir sossegadamente num banquinho duro ou dedicar parte do nosso tempo para desenhar com giz colorido as histórias que desejamos viver.

A graça da vida, não de ser divertida e sim de ser repleta de benevolência, consiste exatamente nisso: nos presentear com asas, molequice e ritmo para dançar e ziquezaguear por jardins coloridos quando o mato seco e os dias sem cores insistem em compor a decoração do nosso quintal.

Sejamos homens e mulheres de aço que não se deixam ser divididos pelo risco da pedra que exclui, limita e segrega.

Sejamos heróis tão humanos, corajosos e fortes para não curvarmos diante dos adversários – situações da vida - que possam querer tomar a nossa bandeirinha.

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Tenho três pares de chinelos

Foi na minha adolescência que aprendi a arrumar minha cama. Não que eu gostasse. Não podia ir à escola sem arrumá-la. Minha mãe foi bastante rígida com isso também.

Não fui diferente de outras crianças ou adolescentes. Também não gostava de levantar cedo e ainda mais prá ir à escola. Agora, diariamente estou de pé às 06h.

Ainda sinto saudades do cheiro do café vindo da cozinha, passado pelo coador de pano, e do rádio sintonizado em modas de viola enquanto sua voz grave e militar me intimava a sair do conforto daquele ninho quente e protetor. Naquela época o colchão era de palha, trazido da roça.

Fingia estar num sono profundo. Com seu jeito impaciente e despachado, pedia para meu vagaroso pai chamar-me. Ele saia irritado do quarto por eu, sequer, mexer um olho após sua insistência e vários cutucões. Depois disso, sim! Estava pronto para deixar as cobertas.

Eram três. Todas tecidas, linha a linha, em algodão. Duas delas em tons esverdeados e a outra em mostarda. As roupas de cama nunca combinavam.

Muito claros e macios, na infância dormi em lençóis feitos de pano de saco, alvejados pela água sanitária e sabão de bola feito pela minha mãe.

A mochila, em brim. De papel de pão as capas dos cadernos e livros. Todos muito bem cuidados, obrigado. Só podiam ser pegos depois da cama arrumada e café tomado. Gostava de molhar o pão no café.

Meus pais nunca se preocuparam se eu havia ou não feito o dever de casa. Tinham outras preocupações. Eu sempre fazia.

Cansados, eles já não conseguiam cuidar de tudo. Aprendi a arrumar a cama. Agora tinha também que arrumar a casa. Pelo menos aqui em Minas, a gente troca a palavra organizar por arrumar. Da mesma forma, “lavamustrem” ao invés de “lavamos a louça”.

Ela sempre deixava os chinelos debaixo da mesa da cozinha. Isso era um desleixo para quem tinha aprendido, com ela, a cuidar da casa. Não foram poucas às vezes em que discuti com minha mãe por causa disso. Havaianas com tiras azuis e um leve desgaste onde o dedão se acomodava e apertava.

Foi logo após o enterro de minha mãe que lavei toda a casa. No outro dia acordei sem o cheiro do café. Olhei prá mesa. Os chinelos não estavam debaixo dela. Nunca mais tive que guardá-los. Também não guardei o choro.

Na semana passada passei pela recepção da empresa onde trabalho. Lá tem um balcão enorme e sobre ele algumas revistas. Estavam todas fora do lugar ou como podemos dizer “bagunçadas”. Algumas sobre o sofá e o balcão e outras sobre uma das mesas que também ficam por lá. Oficialmente, não seria minha responsabilidade, todavia organizei-as enquanto resmungava mentalmente sobre a falta de educação e cuidado das pessoas.

Tem dias que tropeço nos sapatos que deixo pelo quarto. É, geralmente, no fim de semana que consigo colocar as coisas no lugar. Ainda bem que posso me desculpar pela correria do dia-a-dia.

Tenho uma “quinzenalista” que cuida da casa. Eu sou o “semanalista”. Acredito que não exista esta expressão. Gosto de imprimir o “meu jeito” na casa. Várias pessoas preferem dizer “colocar a nossa energia na casa”.

O anoitecer está trazendo uma noite possivelmente fria e um chuvisco manso – àquele que coloca quietação e brandura no sono. Com suas paredes claras, ela já me cobre e aquece. Em gratidão e respeito por essa acolhida diária, dedico parte do meu tempo para cuidar da minha casa, das coisas que tenho e das pessoas que amo.

Macio e de mola é o colchão que me aguarda numa cama que não foi arrumada – do jeito da minha mãe - desde cedo. Há tempos arrumo a cama do meu jeito. Aprendi que os filhos quando não se arrumam – deixam de se organizar internamente - repetem por uma vida o comportamento dos pais. É fascinante ser gente do jeito da gente.

Enquanto arrumo a minha casa física – a de tijolos – também arrumo a minha casa interior que se traduz, na verdade, em minhas emoções, afetos, desafetos, sentimentos e ressentimentos. Ressentir que não vem de mágoa, mas de sentir outra vez, de outra forma, com diferente intensidade, num novo momento, num novo eu.

É muito bom quando colocamos “nossos sapatos no lugar” – nossos pensamentos, sentimentos, afetos e desafetos, a vida - cada um em sua prateleira. Isso evita muitos esbarrões e tombos indesejados, principalmente quando vamos ao banheiro à noite sem acender a luz.

Às vezes impomos às pessoas o nosso “jeito de organizar” – o nosso jeito de ser e fazer as coisas. A sensatez e o respeito devem estar presentes quando pedimos a alguém para tirar seus chinelos debaixo da mesa.

Por outro lado, em algumas situações é mais inteligente e prudente deixar nossos chinelos – nossa vida, nossos afetos e desafetos, sentimentos e pensamentos – como e onde estão.

Nem sempre os chinelos debaixo da mesa desarrumam a casa. Hoje percebo que, no caso da minha mãe, eles nunca desarrumaram nada. Tudo estava no seu devido lugar.

A água do choro, ou àquela que usei para lavar a casa e as louças, serve para a mesma coisa: lavar, alvejar os lençóis e as linhas em algodão coloridas que tecem a coberta da vida que nos aninha e descansa.

Que acordemos cedo, sem ser chamados ou cutucados, para cuidar e arrumar a nossa cama e a casa. Não precisaremos, pois, usar a “desculpa da correria do dia-a-dia” para e por não sermos gratos, respeitosos e dedicados em cuidar de si, do outro e das coisas. Tenho três pares de chinelos.

domingo, 23 de agosto de 2009

Vou estar aqui quando ele passar.

Foi em 1986 que ele voltou a passar pela Terra. Houve grande alvoroço e, como sempre, mensagens apocalípticas sobre o fim dos tempos. Sentado no meio fio em frente a minha casa, ficava por horas olhando fixamente para o Céu escuro. Confesso que sequer vi a cauda do Halley. Eu tinha doze anos.

Contrariando minha mãe, eu e meu primo fomos andar na bicicleta do meu pai logo após o almoço. Enquanto ele pedalava numa banguela – era assim que as pessoas chamavam as ruas “ladeirosas” – para assustarmos um moleque do bairro, resolvi pular da garupa. Nome esquisito e, se não explicado, pode parecer um regionalismo Mineiro. Está lá no dicionário: “garupa é um termo usado para se referir à parte posterior de certos animais que vai desde os rins até a base da cauda”.

As bicicletas e suas versões motorizadas, as motos, herdaram a garupa desses animais – certamente dos cavalos. Fui traquina. Não era briguento. No pulo, quebrei o braço.

Dor insuportável anestesiada pelo sermão de minha mãe – ela e todas as outras são assim.

Na semana retrasada não fui à academia. Ri sozinho do alvoroço – não foi culpa do Halley e sim da Gripe Suína. Rotina alterada.

Na minha memória de infância, o álcool está associado à dor por ser inflamável e causar queimaduras, bem como preparar o bumbum, tão indefeso, para receber uma agulhada do farmacêutico.

Uma vez, para me defender de um “monstro” de jaleco branco e de sua “injeção”, ataquei-o com várias cabeças de cebola que estavam sobre a mesa da cozinha. Para criança, farmacêutico é um mostro de jaleco branco.

Ele fica próximo a minha mesa de trabalho: menos líquido, mais pastoso, em gel. Com perfume que não aciona minha memória de infância. Sempre passo o álcool nas mãos para evitar a Gripe. Entre uma passada e outra me dei conta dos fatos históricos que vivi e tenho vivido. Ri mais ainda.

Sinto, penso, percebo e vivo o que minhas pequenas sobrinhas, de três e dois anos, só irão ler nos livros de história. Certamente serão questões do ENEM – Exame Nacional do Ensino Médio – se resistir até lá.

Vi e ouvi a Fafá de Belém interpretar o Hino Nacional Brasileiro no movimento Diretas Já.
Emocionei-me com a eleição e a morte de Tancredo Neves.

Embraveci com a vitória de Collor e vibrei com o seu “suposto” impeachment.

Senti o terror e a revolução sexual causados pela AIDS.

Tive no bolso o Cruzeiro, Cruzado, Cruzado Novo, Cruzeiro, Cruzeiro Real e Real.

Pela TV eu conheci a ovelha Dolly, acompanhei o funeral de um Papa e a eleição de outro, assustei-me ao ver a calamidade provocada pelas tsunamis e o movimento para frear o Aquecimento Global.

Participei das eleições presidenciais que colocaram Lula no poder por duas vezes consecutivas.

Esperei pelo Bug do Milênio. Passei por ele intacto.

Horrorizado fiquei com a queda das torres gêmeas e ao mesmo tempo tive mais esperança no mundo ao ver um negro ocupando o maior cargo político do planeta.

Estou atônito com os últimos acontecimentos que envolvem as TVs Globo e Record.

São tantas vivências que me perco nelas e, confesso, seria chato para você ler todas elas.

O cometa Halley passa pela órbita terrestre a cada setenta e seis anos. Sua nova visita está prevista para 2061 ou 2062. Fico pensando no que mais viverei até que ele volte. Até lá, não ficarei sentado esperando por ele.

Penso que, por segurança, devemos aprender a pular da garupa – sair das situações que podem quebrar nosso braço, nos ferir de alguma forma. O melhor é não entrar nelas e ter um “passeio de bicicleta menos arriscado”.

Podemos ficar anestesiados com as coisas da vida e com a atitude das pessoas como fiquei pela dor do braço quebrado e pelo sermão da minha mãe. Ainda bem que a anestesia passa. Não fiquemos paralisados.

Alguns vírus podem mesmo nos impedir, por um tempo, de ir aonde temos vontade ou de fazer aquilo que deliciosamente se faz num dia comum - e isso inclui a academia. Que sejam vírus reais e não àqueles que aprisionam e adoecem nossas emoções.

Que tenhamos ao alcance de nossas mãos muitas cabeças de cebola para serem atiradas contra os “monstros de jalecos brancos” – nossos medos. Cada cebola atirada reforçará nossos músculos. Assim, estaremos mais fortalecidos para 2061 ou 2062.

Afinal, quero estar vivo aos oitenta e oito anos para, novamente, sentar no meio fio e olhar fixamente para o Céu para ver o Halley – nem que seja a sua cauda.

sábado, 15 de agosto de 2009

Lenço de bolso

Queria ter escrito e postado um texto pelo Dia dos Pais. Não consegui por alguns motivos. Hoje, pensei em redigir sobre três assuntos. Senti-me em dívida com meu pai. Em agradecimento a ele, priorizei uma parte de sua história que também é minha.

Quando a tarde mostrava seus últimos instantes de Sol e as primeiras sombras da noite chegavam mansamente, ele era ligado. Preto, pequeno, de seis faixas - sem FM - o rádio Motorádio sempre foi um dos poucos companheiros e amigos de meu pai.

Até chegar à Educadora, o botão para sintonizar era girado por seus dedos morenos, finos e amarelados pela nicotina do cigarro. Não me lembro mais o nome do programa. As músicas eram sertanejas, de raiz e cada nota aprofundava a melancolia do crepúsculo. Sou do dia.

Era um homem magro, franzino, talvez de um metro e sessenta e cinco, de pele queimada pelo Sol – um mulato. Discretas ondas quebravam o suave volume dos cabelos pretos penteados para trás.

Olhos castanhos e apertados eram protegidos por pálpebras inchadas e sobrancelhas arqueadas e rasas que destacavam o nariz afilado. Lábios roxos, que apaixonavam minha mãe, cerravam seu enchido repertório sisudo e monossilábico. Como as palavras, os sentimentos também eram apertados. A dor pela perda da mãe, minha avó, mostrou-se no recolhimento num quarto escuro. O verde dos meus olhos é da minha mãe.

Na cidade, suas pernas pedalavam na madrugada para chegar cedo à construção. O roçar perdeu para as pesadas latas de cimento carregadas no ombro. Foi servente de pedreiro. A bicicleta foi outra grande amiga e companheira dele. Ficou cardíaco.

Aos seis anos ele me deu uma bicicleta. Também ganhei um “caminhãozinho betoneira” quando estava internado no hospital por causa de uma encefalite. Eu tinha pedido um “caminhãozinho de boi e cavalo”. Fico pensando na representação que a betoneira tinha para ele já que a massa de reboco e concreto era amassada pela força que ele punha na enxada.

Seu amor e carinho por mim estavam na firmeza da voz que pedia para eu ter cuidado ao andar de bicicleta quando saia de casa para ir até um armazém buscar uma mistura para o almoço.

Naquela época a mistura ia de uma lata de massa de tomate até meio quilo de arroz. Podia ser ainda alguns gramas de carne ou algumas folhas de couve – uma mistura comum e freqüente no almoço e jantar. Preferia comer os talos que minha mãe colocava no canto da vasilha de alumínio.

Ele tinha muito ciúmes do rádio e da bicicleta. Não era raro discutirmos pelo rádio que eu só escutava pela manhã. Um dia o rádio foi roubado.

Minha mãe comprou outro prá ele - que me proibiu de colocar a mão no novo rádio de segunda mão que tinha sido da minha irmã mais velha – naquela época já casada.

Jean Piaget foi quem observou no comportamento adolescente um grande incremento nas habilidades cognitivas, o que pode levar a conflitos, uma vez que o indivíduo tem acrescidas, ainda, a razão, a necessidade de competição. Comprovei, por atitude, a teoria de Piaget.

Nos meus doze ou treze anos, como todo adolescente, fui atrevido e sem poucas preocupações com o que podia ou deveria ser dito. Foi assim que disse a ele que ainda teria um rádio só prá mim. Nesse rádio ele também não colocaria a mão. Gosto muito de música. Enquanto escrevo este texto, escuto música.

Aprendi a fazer “laranjinha” – em algumas regiões também recebe o nome de chup-chup, sacolé ou geladinho. Essa cidade não era tão quente como agora, mesmo assim eu vendia bastante.

Juntei grande parte do dinheiro e a outra minha mãe completou. Treze de dezembro de 1989, Casas Pernambucanas. Nesse dia e nessa loja compramos um rádio gravador, dois em um (rádio e toca-fitas), da Panasonic.

De fato meu pai não colocou as mãos no rádio. Quando o compramos completavam-se um ano, um mês e doze dias que ele tinha falecido. Foi logo após o almoço, numa terça-feira de vinte e cinco de outubro de 1988 por um derrame fulminante. Foi encantando aos quarenta e cinco anos de idade.

No Dia dos Pais, sempre o presenteava com um lenço de bolso. O dinheiro vinha de minha mãe. O lenço, da loja do Edinho e da Leninha.

Com o curto e cerrado repertório de meu pai, aprendi que o silenciar é um ato inteligente e providencial quando estamos na eminência de falar e agir com o atrevimento e pouca preocupação de um adolescente. Isso tem me poupado arrependimento.

A determinação nos impulsiona a girar o botão e sintonizar o desejo com a realidade. Sou determinado.

Conceder-nos o perdão, por uma atitude adolescente num tempo de adolescente, é permitir que a chegada do adulto se faça presente numa canção renovada.

No entardecer, algumas músicas vão mesmo nos deixar melancólicos, mas será necessário ouvi-las para acessarmos nossa essência que, tantas vezes, fica submersa numa lata de cimento a pesar em nossos ombros.

O quarto escuro e vazio de gente não é o melhor lugar da casa para ficarmos enquanto sentimos a dor da perda. Aconselho ficar nos cômodos onde o Sol entra livremente, sem nossa permissão e vontade. Pelo calor curativo, a dor da perda se transforma em saudade que acalenta.

Que nossos lenços sejam tirados do bolso e levados aos olhos para secar lágrimas depois de muitas risadas.