sábado, 15 de agosto de 2009

Lenço de bolso

Queria ter escrito e postado um texto pelo Dia dos Pais. Não consegui por alguns motivos. Hoje, pensei em redigir sobre três assuntos. Senti-me em dívida com meu pai. Em agradecimento a ele, priorizei uma parte de sua história que também é minha.

Quando a tarde mostrava seus últimos instantes de Sol e as primeiras sombras da noite chegavam mansamente, ele era ligado. Preto, pequeno, de seis faixas - sem FM - o rádio Motorádio sempre foi um dos poucos companheiros e amigos de meu pai.

Até chegar à Educadora, o botão para sintonizar era girado por seus dedos morenos, finos e amarelados pela nicotina do cigarro. Não me lembro mais o nome do programa. As músicas eram sertanejas, de raiz e cada nota aprofundava a melancolia do crepúsculo. Sou do dia.

Era um homem magro, franzino, talvez de um metro e sessenta e cinco, de pele queimada pelo Sol – um mulato. Discretas ondas quebravam o suave volume dos cabelos pretos penteados para trás.

Olhos castanhos e apertados eram protegidos por pálpebras inchadas e sobrancelhas arqueadas e rasas que destacavam o nariz afilado. Lábios roxos, que apaixonavam minha mãe, cerravam seu enchido repertório sisudo e monossilábico. Como as palavras, os sentimentos também eram apertados. A dor pela perda da mãe, minha avó, mostrou-se no recolhimento num quarto escuro. O verde dos meus olhos é da minha mãe.

Na cidade, suas pernas pedalavam na madrugada para chegar cedo à construção. O roçar perdeu para as pesadas latas de cimento carregadas no ombro. Foi servente de pedreiro. A bicicleta foi outra grande amiga e companheira dele. Ficou cardíaco.

Aos seis anos ele me deu uma bicicleta. Também ganhei um “caminhãozinho betoneira” quando estava internado no hospital por causa de uma encefalite. Eu tinha pedido um “caminhãozinho de boi e cavalo”. Fico pensando na representação que a betoneira tinha para ele já que a massa de reboco e concreto era amassada pela força que ele punha na enxada.

Seu amor e carinho por mim estavam na firmeza da voz que pedia para eu ter cuidado ao andar de bicicleta quando saia de casa para ir até um armazém buscar uma mistura para o almoço.

Naquela época a mistura ia de uma lata de massa de tomate até meio quilo de arroz. Podia ser ainda alguns gramas de carne ou algumas folhas de couve – uma mistura comum e freqüente no almoço e jantar. Preferia comer os talos que minha mãe colocava no canto da vasilha de alumínio.

Ele tinha muito ciúmes do rádio e da bicicleta. Não era raro discutirmos pelo rádio que eu só escutava pela manhã. Um dia o rádio foi roubado.

Minha mãe comprou outro prá ele - que me proibiu de colocar a mão no novo rádio de segunda mão que tinha sido da minha irmã mais velha – naquela época já casada.

Jean Piaget foi quem observou no comportamento adolescente um grande incremento nas habilidades cognitivas, o que pode levar a conflitos, uma vez que o indivíduo tem acrescidas, ainda, a razão, a necessidade de competição. Comprovei, por atitude, a teoria de Piaget.

Nos meus doze ou treze anos, como todo adolescente, fui atrevido e sem poucas preocupações com o que podia ou deveria ser dito. Foi assim que disse a ele que ainda teria um rádio só prá mim. Nesse rádio ele também não colocaria a mão. Gosto muito de música. Enquanto escrevo este texto, escuto música.

Aprendi a fazer “laranjinha” – em algumas regiões também recebe o nome de chup-chup, sacolé ou geladinho. Essa cidade não era tão quente como agora, mesmo assim eu vendia bastante.

Juntei grande parte do dinheiro e a outra minha mãe completou. Treze de dezembro de 1989, Casas Pernambucanas. Nesse dia e nessa loja compramos um rádio gravador, dois em um (rádio e toca-fitas), da Panasonic.

De fato meu pai não colocou as mãos no rádio. Quando o compramos completavam-se um ano, um mês e doze dias que ele tinha falecido. Foi logo após o almoço, numa terça-feira de vinte e cinco de outubro de 1988 por um derrame fulminante. Foi encantando aos quarenta e cinco anos de idade.

No Dia dos Pais, sempre o presenteava com um lenço de bolso. O dinheiro vinha de minha mãe. O lenço, da loja do Edinho e da Leninha.

Com o curto e cerrado repertório de meu pai, aprendi que o silenciar é um ato inteligente e providencial quando estamos na eminência de falar e agir com o atrevimento e pouca preocupação de um adolescente. Isso tem me poupado arrependimento.

A determinação nos impulsiona a girar o botão e sintonizar o desejo com a realidade. Sou determinado.

Conceder-nos o perdão, por uma atitude adolescente num tempo de adolescente, é permitir que a chegada do adulto se faça presente numa canção renovada.

No entardecer, algumas músicas vão mesmo nos deixar melancólicos, mas será necessário ouvi-las para acessarmos nossa essência que, tantas vezes, fica submersa numa lata de cimento a pesar em nossos ombros.

O quarto escuro e vazio de gente não é o melhor lugar da casa para ficarmos enquanto sentimos a dor da perda. Aconselho ficar nos cômodos onde o Sol entra livremente, sem nossa permissão e vontade. Pelo calor curativo, a dor da perda se transforma em saudade que acalenta.

Que nossos lenços sejam tirados do bolso e levados aos olhos para secar lágrimas depois de muitas risadas.

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