terça-feira, 3 de novembro de 2009

A janela de meu quarto está aberta.

São por volta das 23h45 quando me deito depois de ter passado o protetor labial. Viro-me de lado, pra direita, e suspiro. Ajeito a cabeça num travesseiro. O braço direito repousa num outro travesseiro enquanto o esquerdo, caído por cima das costelas, pousa a mão até o colchão. Uma perna dobrada. A outra, nem tanto.

Algumas imagens se formam na parede clara pela luz dos faróis que voltam pra casa. Pode ser que também estejam saindo de casa. A claridade vem com o barulho que, frequentemente, é de alguma sirene.

Pela janela fechada não passa o vento e nem as baratas voadoras. No entanto, em poucas noites, sou visitado pela luz da Lua sobre minha cama. Vez em quando ela puxa uma e outra nuvem para se esconder do meu olhar. Tenho percebido que a Lua é muito tímida. Acho que por isso prefere passear pela noite, quando a maioria das pessoas está dormindo.

Olhos amolecidos pelo sono ainda se atentam pelo, por certo, último barulho iluminado que passa pela janela. É um avião branco e laranja. Dizem que ele vem de São Paulo todas as noites. Não que seja tão grande, mas da minha cama ele é. Elegante, pomposo, cheio de luz e ronco ele também é. Sou fascinado por essa invenção. Tenho medo de voar.

Suas grades de ferro foram pintadas em cor laranja, assim como uma das cores do avião. Era um vitrô, simples e com vidro canelado – lembrava uma colméia - um dos tipos mais simples.

Por ele, aos sete anos de idade, via o balanço da sombra do pé de limão que me assustava ao se transformar no “Mão de Pilão”. Quando eu caprichava nas peraltices, minhas irmãs me diziam que o “Mão de Pilão” viria me pegar. Na época, eu acreditava que ele fosse um bandido muito perigoso.

Outros três vitrôs estavam pelos outros três cômodos da casa que não era de tijolos, mas de placa de cimento. No calor era insuportável. No frio também. Das várias casas onde morei, era dela que mais gostava. Porque ela, tão pequena, encurtava meus passos e aumentava a proximidade entre nossa família.

Na minha adolescência, morei numa casa não acabada. Os vitrôs, sem vidros canelados, foram cobertos por papelão. Outros espaços, onde seriam chumbados os vitrôs, receberam pilhas de tijolos sem massa de reboco ou cimento. Era apenas uma barricada contra o vento e a chuva.

Não entrava vento. Não entrava luz. Não entrava chuva. Nossa casa ficou assim por muito tempo. Já tinha me acostumado à sensação de sempre noite ou dia nublado sem chuva.

Minha irmã do meio fez uma cirurgia no coração. Uma das recomendações do médico foi colocá-la num quarto ventilado. Parede quebrada, vitrô retirado, veneziana afixada. Agora a luz do Sol e o vento dançavam e, vez e outra, traziam folhas secas e o desarrumo no lençol. Não era raro ouvir também a braveza da porta do quarto por ter sido fechada pelo vento que, apressadamente, queria arejar toda a casa.

A casa não acabada foi reformada antes de ser terminada. Foi logo depois de minha mãe ter sido encantada.

Por fim, a nova casa recebera o nome de Maria Clara. Uma homenagem justa para um lugar onde, até então, não se via muita luz e nem sentia muito vento. Fui cuidadoso em garantir que a nova casa tivesse muita claridade e ventilação.

Outra noite, pelo calor, mas muito mais pela companhia que ocupava o travesseiro onde repouso meu braço direito, resolvi abrir a janela.

Os visitantes boêmios estavam lá: a Lua, as imagens e o barulho produzidos pelos faróis que voltam ou saem de casa. Não demorou muito até chegar o ronco exuberante da beleza do avião.

Outro compadre, o vento, que há muito andara sumido desde o vitrô da casa não acabada, concedeu o ar da graça. É refrescante matar a saudade de quem deixamos ser levado pela ausência.

É prudente cuidarmos das palavras que dizemos para não descuidarmos das pessoas que as escutam. Algumas palavras, plantadas num coração inocente, podem transformar a sombra do balanço do pé de limão num violento “Mão de Pilão”.

Molhar na chuva e queimar no calor do Sol é melhor que ficar refém dos tijolos empilhados ou dos papelões afixados na grade do vitrô. Empilhamos desculpas para não arriscar.

Maturidade, inteligência ou idade interferem pouco no processo de aprender. Algumas pessoas vão mesmo nos ensinar a abrir as janelas que há tanto tempo foram fechadas pelo medo das baratas voadoras. Abrir janelas é uma decisão decorrente do querer. Matemos algumas baratas para respirarmos um ar renovado e puro numa noite quente de verão.

Dizem que os olhos são as janelas da alma. Por mais que estejam sonolentos, quero manter meus olhos abertos para ver todas as janelas que se abrem depois de algumas portas terem sido fechadas pelo vento, sem maldade, que, apressadamente, queria entrar e arejar toda a casa e não somente o quarto.