segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Tenho três pares de chinelos

Foi na minha adolescência que aprendi a arrumar minha cama. Não que eu gostasse. Não podia ir à escola sem arrumá-la. Minha mãe foi bastante rígida com isso também.

Não fui diferente de outras crianças ou adolescentes. Também não gostava de levantar cedo e ainda mais prá ir à escola. Agora, diariamente estou de pé às 06h.

Ainda sinto saudades do cheiro do café vindo da cozinha, passado pelo coador de pano, e do rádio sintonizado em modas de viola enquanto sua voz grave e militar me intimava a sair do conforto daquele ninho quente e protetor. Naquela época o colchão era de palha, trazido da roça.

Fingia estar num sono profundo. Com seu jeito impaciente e despachado, pedia para meu vagaroso pai chamar-me. Ele saia irritado do quarto por eu, sequer, mexer um olho após sua insistência e vários cutucões. Depois disso, sim! Estava pronto para deixar as cobertas.

Eram três. Todas tecidas, linha a linha, em algodão. Duas delas em tons esverdeados e a outra em mostarda. As roupas de cama nunca combinavam.

Muito claros e macios, na infância dormi em lençóis feitos de pano de saco, alvejados pela água sanitária e sabão de bola feito pela minha mãe.

A mochila, em brim. De papel de pão as capas dos cadernos e livros. Todos muito bem cuidados, obrigado. Só podiam ser pegos depois da cama arrumada e café tomado. Gostava de molhar o pão no café.

Meus pais nunca se preocuparam se eu havia ou não feito o dever de casa. Tinham outras preocupações. Eu sempre fazia.

Cansados, eles já não conseguiam cuidar de tudo. Aprendi a arrumar a cama. Agora tinha também que arrumar a casa. Pelo menos aqui em Minas, a gente troca a palavra organizar por arrumar. Da mesma forma, “lavamustrem” ao invés de “lavamos a louça”.

Ela sempre deixava os chinelos debaixo da mesa da cozinha. Isso era um desleixo para quem tinha aprendido, com ela, a cuidar da casa. Não foram poucas às vezes em que discuti com minha mãe por causa disso. Havaianas com tiras azuis e um leve desgaste onde o dedão se acomodava e apertava.

Foi logo após o enterro de minha mãe que lavei toda a casa. No outro dia acordei sem o cheiro do café. Olhei prá mesa. Os chinelos não estavam debaixo dela. Nunca mais tive que guardá-los. Também não guardei o choro.

Na semana passada passei pela recepção da empresa onde trabalho. Lá tem um balcão enorme e sobre ele algumas revistas. Estavam todas fora do lugar ou como podemos dizer “bagunçadas”. Algumas sobre o sofá e o balcão e outras sobre uma das mesas que também ficam por lá. Oficialmente, não seria minha responsabilidade, todavia organizei-as enquanto resmungava mentalmente sobre a falta de educação e cuidado das pessoas.

Tem dias que tropeço nos sapatos que deixo pelo quarto. É, geralmente, no fim de semana que consigo colocar as coisas no lugar. Ainda bem que posso me desculpar pela correria do dia-a-dia.

Tenho uma “quinzenalista” que cuida da casa. Eu sou o “semanalista”. Acredito que não exista esta expressão. Gosto de imprimir o “meu jeito” na casa. Várias pessoas preferem dizer “colocar a nossa energia na casa”.

O anoitecer está trazendo uma noite possivelmente fria e um chuvisco manso – àquele que coloca quietação e brandura no sono. Com suas paredes claras, ela já me cobre e aquece. Em gratidão e respeito por essa acolhida diária, dedico parte do meu tempo para cuidar da minha casa, das coisas que tenho e das pessoas que amo.

Macio e de mola é o colchão que me aguarda numa cama que não foi arrumada – do jeito da minha mãe - desde cedo. Há tempos arrumo a cama do meu jeito. Aprendi que os filhos quando não se arrumam – deixam de se organizar internamente - repetem por uma vida o comportamento dos pais. É fascinante ser gente do jeito da gente.

Enquanto arrumo a minha casa física – a de tijolos – também arrumo a minha casa interior que se traduz, na verdade, em minhas emoções, afetos, desafetos, sentimentos e ressentimentos. Ressentir que não vem de mágoa, mas de sentir outra vez, de outra forma, com diferente intensidade, num novo momento, num novo eu.

É muito bom quando colocamos “nossos sapatos no lugar” – nossos pensamentos, sentimentos, afetos e desafetos, a vida - cada um em sua prateleira. Isso evita muitos esbarrões e tombos indesejados, principalmente quando vamos ao banheiro à noite sem acender a luz.

Às vezes impomos às pessoas o nosso “jeito de organizar” – o nosso jeito de ser e fazer as coisas. A sensatez e o respeito devem estar presentes quando pedimos a alguém para tirar seus chinelos debaixo da mesa.

Por outro lado, em algumas situações é mais inteligente e prudente deixar nossos chinelos – nossa vida, nossos afetos e desafetos, sentimentos e pensamentos – como e onde estão.

Nem sempre os chinelos debaixo da mesa desarrumam a casa. Hoje percebo que, no caso da minha mãe, eles nunca desarrumaram nada. Tudo estava no seu devido lugar.

A água do choro, ou àquela que usei para lavar a casa e as louças, serve para a mesma coisa: lavar, alvejar os lençóis e as linhas em algodão coloridas que tecem a coberta da vida que nos aninha e descansa.

Que acordemos cedo, sem ser chamados ou cutucados, para cuidar e arrumar a nossa cama e a casa. Não precisaremos, pois, usar a “desculpa da correria do dia-a-dia” para e por não sermos gratos, respeitosos e dedicados em cuidar de si, do outro e das coisas. Tenho três pares de chinelos.

5 comentários:

  1. oi amigo, que lindo texto...tivemos uma infância bem parecida...saudades...
    Grande beijo.
    Josi.

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  2. Belíssimo, fiquei reflexivo, sou bem assim prezo às pequenas coisas que fazem toda diferença.

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  3. Adorei seu texto... Me fez lembrar meu pai, em quem não penso há muito...
    Ri.

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  4. Zé,
    Sua alma é linda, nobre e cativante, por isso suas palavras são belas e expressam com riqueza a felicidade verdadeira que há na simplicidade da vida. Belíssimo texto!
    Denise Policarpo

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